segunda-feira, 12 de abril de 2010

A gota d'água do Morro do Bumba

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Quando escrevi sobre Conjuntos Habitacionais em Áreas de Várzea , jamais acreditaria se me afirmassem que o problema poderia ser piorado. Mas como aprendi até a duras penas, e representei em frase um tanto pessimista: quando achamos que chegou-se ao fundo do poço, eis que alguém descobre um alçapão.




Não contentes em permitir que a população de baixa renda (a partir daqui, economicamente neste texto tratáveis por 'pobres') ocupem áreas de algum risco de danos materiais (os pobres móveis molhados), os governantes permitiram que os 'pobres' ocupem áreas com risco de desmoronamento.

Aqui, deve-se deixar bem claro, que não são os 'pobres' que ocupam estas áreas porque são intrinsicamente irresponsáveis (como se por absurdo, tivessem uma mórbida atração pelo perigo), e sim, ocupam tais áreas pela malévola união de necessidade e ignorância, pura e simples.

Mas os governantes e suas estruturas técnicas são irresponsáveis (a liderança sempre trás como característica concentrar a responsabilidade última) e um tanto incompetentes. Na exata medida que existem políticos que em troca de bases eleitorais permitem a ocupação de áreas de risco e apoiam tais urbanização e infra-estrutura (aqui deveriam haver aspas), existe a gerida estrutura de técnicos que ao tomar conhecimento dos dados de engenharia dos locais a serem urbanizados fecham os olhos para os riscos.

Comentário 1: risco zero implica em custo infinito, sempre repito, mas concordemos que o que sejam as estruturas de engenharia civil nas favelas (aquelas aglomerações distorcidamente chamadas de "comunidades") estão longe do que seja alto custo (no que resulta me levar ao termo 'maloca'*), e no caso de inúmeros locais do Brasil, muito próximos do risco imenso.

* Interessante que o termo 'maloca', quando numa letra de um samba, é "cultura", mas quando usado para definir uma habitação que inclusive não está nos parâmetros legais, inclusive de segurança, ou até de salubridade, no local da expressão rebuscada e inútil "habitação humilde", se é dito "politicamente incorreto". Sinceramente, prefiro ser politicamente incorreto e até desagradável que ter uma centena de mortes sobre meus ombros.


A situação de corrompe quando se corrompem os termos. - Karl Marx


Comentário 2: para explicar o que seja uma distribuição, que implica em, por exemplo, probabilidades acumuladas no tempo, uma boa imagem é o perigoso (óbvio) jogo de roleta russa. Tirando detalhes de equilíbrio do tambor do revólver, que favorecem o "não tiro", a probabilidade de um tambor de 6 câmaras é como a probabilidade de um dado. Ao fazer-se a "aposta" 1 vez, a probabilidade de ocorrer o disparo é de 1 chance em 6. Numa segunda rodada, a probabilidade continua 1 em 6. Mas a probabilidade nas duas rodadas, de ocorrer um disparo, é maior que um sexto. Na verdade, cresce e se aproxima da certeza absoluta de sair um disparo, quanto maior for o número de rodadas.

Para se entender este argumento por outra via, sempre exemplifico com a pergunta: Qual a probabilidade de sair um lançamento de um dado com o número 6 em 1 milhão de lançamentos? É claro que é 1 (uma certeza de ocorrência), ou por ainda outra via, é óbvio que em algum momento, ao longo de seguidos lançamentos, ocorrerá o número 6.

Retornando ao caso Morro do Bumba, é evidente que um distribuição de instáveis casas sobre instável solo numa região de instável clima (ou diria tragicomicamente estável, pois no sudeste brasileiro sempre chove, e intensamente), mais cedo ou mais tarde, seria a bala que dispararia numa roleta russa. Lembrando que o que seja um 'morro', invariavelmente, desmorona, pois existe o que seja erosão, que aliás, é exatamente o que produziu sua declividade acentuada. Numa linguagem mais em combinatória, a chuva típica do Rio não faria desmoronar com certeza a 'favela'. A contrução de mais uma 'maloca' também não. O solo ceder um pouco pois 'lixão' se compacta, também não. Mas as constantes chuvas, com crescente número de 'malocas' em solo em comportamento mais próximo de um fluido, obrigatoriamente tenderia à catástrofe.

Mas antes de ser um solo instável, aquilo não seria propriamente um solo. Antes de ser um depósito de lixo, que recebe hoje entre nós engenheiros o nome mais descritivo de aterro sanitário, é o que seja um "lixão". Tristemente, nada mais descritivo de desigualdade perversamente ligada à irresponsabilidade que 'pobres' morando em 'malocas', aglomerados em 'favelas', subindo perigosos morros em cima de um 'lixão'.

Deixemos bem claro que 'lixões', quando levados ao nível de aterro sanitário, e estruturados para serem produtores de metano eficientemente equipados, são geradores de riqueza como se evidencia no Japão e Hong Kong* - que exatamente pela geografia e pouco espaço, exigem tais medidas (tal pode ser feito até com fezes, o que é desenvolvido em grande escala na Índia), e sobre tais aterros esgotados em sua capacidade de produção, instalam-se até campos de golfe (com se evidencia amplamente nos EUA). Observe-se que o esgotamento da produção de metano se dá exatamente quando a decomposição orgânica cessa e o material está na sua compactação e inércia química que já o caracteriza como um solo propriamente dito.

Contraste entre operações no contexto "lixo" entre nosso país e países industrializados.


*Já na década de 80 a China já desenvolvia o aproveitamento de lixo na produção de biogás:

- ALCIMAR NUNES DE PAULA; BIOGÁS: O COMBUSTÍVEL DO FUTURO; Monografia apresentada ao Departamento de Engenharia da Universidade Federal de Lavras; 2006

- ALLEY, Rewi. A expansão do biodigestor na China. In revista Eastern Horizon. Hong Kong, 10 de outubro, 1980, vol. XIX.

Mas analisando a questão mais aos olhos de um brasileiro, conhecedor de determinadas limitações e aquilo que ganhou o bordão "falta de vontade política", se o aproveitamento energético não fosse possível, que houvesse a deposição adequada. Se a deposição adequada não fosse possível, que houvesse ao menos o isolamento posterior.

Só o que não me parece aceitável é a deposição negligente de 'pobres' sobre o perigo certo.

Mas pulemos o óbvio dos óbvios, e o reclamar do que sou distante e até incapaz de resolver*, e tratemos de uma questão em custos.

*Embora, orgulhosamente, assinatura minha alguma existe em obra desta natureza irresponsável.


Houve gastos de 78 mil reais (por meus hábitos, pretendendo o futuro, aproximadamente 43 mil dólares) por residência em obras de infraestrutura no Morro dos Prazeres.

Realizando cálculos simples por outras vias, observemos que existem condomínios tanto no Rio quanto em São Paulo, de bom padrão, que ocupam áreas de 25 x 25 metros, de 25 andares (por exemplo), que, por estes números, numa média de 4 pessoas por unidade residencial, considerando apenas duas unidades por andar, permitem o habitar 200 pessoas em 625 metros quadrados, ou seja: 0,32 pessoa por metro quadrado. Consideremos este valor como um número que une 'ricos' e uma ocupação de área territorial.

Uma observação: claro que 'ricos propriamente ditos' ocupam até casas de dezenas de milhares de metros quadrados de área, tanto de terreno quanto construídas, ou apartamentos de milhares de metros, mas sua representatividade estatística é insignificante e inútil nesta análise.

Consideremos, que em 625 metros quadrados de terreno, um condomínio mais característico de "classe média" permitiria, digamos, com uma ocupação de 75% do mesmo terreno, 4 apartamentos por andar de 117 metros quadrados cada um. O que levaria a população deste terreno para, digamos, a 3 pessoas por unidade, com 12 pessoas por andar, 300 pessoas no prédio, levando a 0,48 pessoa por metro quadrado do terreno.

Mas pensemos nas 'malocas'. Consideremos uma com 4 x 3 metros, 12 metros quadrados, com 4 pessoas. Disto, 625 metros quadrados só permitiriam a ocupação (quase absurda, dados acessos e espaços comuns) de aprox. 53 'malocas', que levam a aprox. 208 pessoas, ou aprox. 0,33 pessoa por metro quadrado.

Ou seja: mesmo forçando os valores, 'pobres' ocupam tanta área por metro quadrado de terreno que 'ricos', e mais que 'classe média'.

Como nota, lembremos que o desastre 'classe média', do edifício Palace II, causou a morte de 8 pessoas, e do ponto de vista de alguma engenharia (coisa que numa 'favela' sobre um 'lixão' me parece não existir) foi um indicidente grave.

Independente da verdade gritante acima, a ocupação baseada apenas em terreno pelos 'pobres' leva a ocupação evidente de território (uma suburbanização das áreas urbanas) que faz crescer aceleradamente a infraestrutura macro necessária - avenidas, metrôs e trens, estradas, instalações de esgoto, água potável, e finalmente, a gota d'água que desencadeou a tragédia que é o motivador deste texto: águas pluvias.

Detalhemos: um edifício de 'classe média' permite a construção de cisternas, sistemas de drenagem, adequação das instalações de esgoto, etc, numa estrutura maior, da rua na qual está, e na avenida a qual esta rua se conecta, ao canal em que deságua. 'Favelas' são um empilhamento de moradias rústicas, desconexas e infradesestruturadas (neologismo, acredito, meu), não uma obra, com todas as poucas letras.

Mas observemos, mais acima neste texto, que 78 mil reais permitiriam perfeitamente a construção, ainda mais em enorme escala, de apartamentos razoáveis para a mesma população que agora se encontra nas áreas de risco. Assim, concluímos que manter a 'roleta russa' em giro foi mais caro que construir extensivamente apartamentos em centros habitacionais.
Uma observação contábil: estes 78 mil reais, saindo de uma massa tributária, saíram, por sua vez, de uma arrecadação, no Brasil predominantemente sobre as massas mais pobres da população, e foram parar em (1) funcionários públicos envolvidos nas obras - e tal é fluxo constante no tempo, (2) empresas (logo empresários de) empreiteiras terceirizadas, (3) fornecedores de material de construção. Sendo assim, transferiram-se da população para estes, e como tornaram-se perda completa, tornaram-se completo desperdício e transferência de riqueza sem a contrapartida da benfeitoria feita. Resumindo: como estiveram sob o risco, e tal virou "sinistro" a única coisa que tais obras produziram foi a transferência/concentração de riqueza (algo completamente diferente de sua distribuição).

A ilha de Manhattan e o a região central de São Paulo, contrastes de planejamento e estruturação.


Aqui, acrescentemos que infraestruturas crescem em custo proporcionalmente à distância, logo comprimento", mas uma distância de algum valor, em múltiplas ramificações, exigirá, por exemplo para água, vazões grandes em longas distâncias, logo, custos altos por estas longas distâncias, enquanto distâncias curtas permitirão custos altos investidos concentrados em curtas distâncias. Como exemplo, por similaridade é muito mais fácil construir uma larga avenida de 5 quilômetros ramificada em diversas ruas que uma longuíssima avenida/estrada de mesma largura necessária chegando a longíssimos subúrbios, não interessando se sobre ela rodarão ônibus ou paralelamente trens urbanos. Portanto, concentração, densidade, em termos urbanos gera economia, e não custos, mas exige estruturado e rigoroso planejamento.

Também acrescentemos que concentrações urbanas de alta densidade permitem maiores e mais "espessos" cinturões verdes, no abastecimento de hortifrutigranjeiros, o que reduz ainda mais, pela proximidade, os custos da ligística de abastecimento de áreas urbanas.

Logo, a pobreza sinergiza a pobreza, e tem elevados custos, pois custos dilapidam a geração de riqueza, inclusive ao ter-se de salvar as vítimas da tendência inexorável das probabilidades desfavoráveis. Talvez, por isso, a centena de vítimas do Morro do Bumba tenha sido a gota d'água que desencadeará um processo de racionalização da ocupação urbana no Brasil, e tal processo, no fundo e no longo prazo, terá como objetivo a diminuição não do que sejam 'favelas' cobertas e empilhadas extensivamente do que sejam 'malocas', mas a eliminação do que sejam 'pobres'.

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