domingo, 25 de maio de 2025

Algumas obviedades econômicas - 3

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A falácia da pilha de ouro


Sobre a concentração de riqueza.



Gemini da Google e Francisco Quiumento


Voltando à nossa caixa de areia, palco de tantas analogias sobre a dinâmica da riqueza, emerge um pensamento recorrente e carregado de juízo moral: a percepção de que grandes acumulações de "montes de areia" (riqueza) são intrinsecamente imorais e inevitavelmente associadas a comportamentos perversos. Essa visão, muitas vezes alimentada por uma leitura superficial da distribuição de recursos, tropeça em um erro fundamental: a crença de que essa acumulação é estática, como uma imutável pilha de ouro, em vez de reconhecê-la como capital dinâmico, constantemente circulando e se recombinando de inúmeras maneiras.


Dessa falácia primária derivam equívocos secundários, como a ideia simplista de que "bilionários" (a ordem de grandeza da moda, convém notar) deveriam simplesmente dividir sua riqueza, revelando o que muitos identificam como o "velho credo da inveja". A própria sugestão de "dividir" essa representação numérica de valor de forma infantil ignora a intrincada teia de relações econômicas que sustentam a produção. É nesse "valor" que o trabalhador na linha de produção encontra seu sustento. Fundir a análise primária e equivocada de Marx com o salto de produtividade pós-Ford – um avanço que, crucialmente, não foi obra de um único gênio – e propor uma divisão simplista da riqueza de uma empresa pode ter como consequência que o próprio torno, a ferramenta de trabalho desse operário, deixe de existir amanhã. Afinal, esse maquinário essencial faz parte do valor da empresa e, portanto, da riqueza que até pouco antes era atribuída "apenas ao bilionário".


A verdadeira divisão da riqueza não pode ser confundida com uma partilha simplória dos meios de produção, como se fosse uma esmola distribuída. Para ilustrar a ingenuidade dessa ideia, consideremos os dados da revista Forbes de abril de 2025, que estimava a existência de três mil bilionários com um patrimônio total de US$ 16 trilhões. Dividindo esse montante pela população mundial de oito bilhões de pessoas, obteríamos aproximadamente dois mil dólares por habitante. Voltando ao nosso trabalhador e seu torno, essa quantia dificilmente seria suficiente para adquirir a máquina, quanto mais um navio de transporte ou mesmo uma ferramenta de bancada de maior sofisticação.


A divisão da riqueza deve ocorrer no plano econômico, no sentido mais completo e profundo da palavra, através de mecanismos que promovam a geração de novas oportunidades, o aumento da produtividade, a criação de empregos e a distribuição mais equitativa dos frutos do crescimento. Reduzir a questão a uma partilha tola, baseada em cálculos infantis para expressar uma suposta injustiça, apenas revela um erro fundamental na análise do problema.


Se a fragilidade desse tipo de raciocínio ainda não estiver clara, basta considerar a seguinte questão: após esses dois mil dólares serem cuidadosamente distribuídos, onde eles seriam investidos para continuar gerando riqueza amanhã? A análise da fortuna de alguns como uma estática pilha de ouro reflete uma visão econômica arcaica, quase medieval. É precisamente essa mentalidade antiquada que impede a compreensão do papel das enormes capitalizações de empresas (entidades distintas de seus proprietários individuais, uma realidade que o mercado de ações contemporâneo já estabeleceu, desfazendo a ignorância sobre as diversas formas como a riqueza se distribui na sociedade e entre populações específicas). A riqueza, na sua forma dinâmica de capital, é um motor de produção e inovação, e sua "divisão" mais eficaz ocorre através do seu funcionamento eficiente e da criação de oportunidades para todos participarem da sua geração.


Como o Capital Flui e Beneficia a Sociedade

A imagem da riqueza como uma "pilha de ouro" parada e intocada é uma representação enganosa da sua verdadeira natureza e função em uma economia dinâmica. Na realidade, o capital, em suas diversas formas, está constantemente em movimento, fluindo através de um complexo sistema de investimentos, transações e inovações que geram benefícios em cascata para toda a sociedade.

  • Investimento em Inovação e Tecnologia: Uma parcela significativa do capital acumulado é reinvestida em pesquisa e desenvolvimento, impulsionando a inovação e a criação de novas tecnologias. Esses avanços, por sua vez, levam a produtos e serviços mais eficientes, acessíveis e que melhoram a qualidade de vida. Pense nos bilhões investidos em empresas de tecnologia que desenvolveram a internet, os smartphones e a inteligência artificial – esses investimentos transformaram a sociedade e criaram inúmeras oportunidades.

  • Criação de Empregos e Renda: O capital é essencial para a criação e expansão de empresas, que são as principais geradoras de empregos. Quando empresas investem em novas instalações, equipamentos ou na expansão de suas operações, elas contratam mais trabalhadores, injetando renda na economia e permitindo que mais pessoas participem da criação de riqueza. O próprio salário dos trabalhadores é parte desse fluxo de capital, sustentando suas famílias e impulsionando o consumo.

  • Desenvolvimento de Infraestrutura: Grandes volumes de capital são necessários para financiar projetos de infraestrutura, como estradas, portos, aeroportos, redes de energia e sistemas de comunicação. Esses investimentos não apenas facilitam o comércio e a produção, mas também melhoram a qualidade de vida da população, proporcionando acesso a serviços essenciais e criando um ambiente mais propício ao desenvolvimento econômico.

  • Financiamento de Novos Negócios (Empreendedorismo): O capital de investidores e instituições financeiras é crucial para o surgimento e crescimento de novas empresas e empreendimentos. Ao financiar startups e pequenos negócios, o capital permite que ideias inovadoras se transformem em produtos e serviços reais, gerando empregos, renda e novas soluções para os desafios da sociedade.

  • Aumento da Produtividade e Eficiência: O investimento em bens de capital, como máquinas e equipamentos modernos, aumenta a produtividade do trabalho, permitindo que mais bens e serviços sejam produzidos com a mesma quantidade de esforço. Essa maior eficiência geralmente se traduz em preços mais baixos para os consumidores, maior lucratividade para as empresas (que podem reinvestir) e salários potencialmente mais altos para os trabalhadores.

Em vez de uma pilha estática, o capital em circulação é como um rio que irriga diversas áreas da economia, gerando crescimento, inovação e oportunidades para um número muito maior de pessoas do que apenas seus proprietários diretos. A chave para uma economia próspera não reside em impedir a acumulação de capital, mas em garantir que ele flua de maneira eficiente e seja reinvestido em atividades que beneficiem a sociedade como um todo.

"A empresa de uma libra" 

O Mercado de Ações: Fragmentando a Propriedade e Distribuindo a Riqueza (Ainda que Desigualmente)

Para entender como a riqueza se distribui de maneiras complexas na economia moderna, é fundamental compreender o papel do mercado de ações. Longe da imagem de um único "bilionário" detendo toda a "pilha de ouro" de uma empresa, o mercado de ações permite que a propriedade de grandes corporações seja fragmentada em milhões de partes menores, chamadas ações.

  • Propriedade Fracionada: Quando uma empresa decide abrir seu capital e vender ações na bolsa de valores, ela está, essencialmente, vendendo pequenas parcelas de si mesma para investidores. Cada ação representa uma reivindicação sobre os ativos e os lucros futuros dessa empresa. Assim, em vez de uma única pessoa ser dona de toda a "pilha de ouro" da empresa, essa propriedade é distribuída entre inúmeros acionistas, que podem ser grandes instituições financeiras, fundos de pensão, outras empresas e até mesmo pequenos investidores individuais.

  • Democratização do Investimento (com ressalvas): O mercado de ações teoricamente democratiza o investimento, permitindo que um número muito maior de pessoas participe do crescimento e do sucesso das empresas. Com quantias relativamente pequenas, indivíduos podem comprar ações e se tornar proprietários parciais de grandes negócios. Isso oferece a oportunidade de acumular riqueza através da valorização das ações e do recebimento de dividendos (parte dos lucros distribuída aos acionistas).

  • Liquidez e Mobilidade da Riqueza: As ações são ativos líquidos, o que significa que podem ser compradas e vendidas relativamente rápido no mercado. Essa liquidez permite que a riqueza não fique "presa" em uma única pilha, mas possa ser mobilizada e realocada para diferentes empresas e setores da economia, buscando os melhores retornos e financiando novas iniciativas.

  • Distribuição Desigual: É crucial reconhecer que, embora o mercado de ações distribua a propriedade das empresas por um número maior de pessoas, essa distribuição é frequentemente desigual. Grandes investidores institucionais e indivíduos com alto patrimônio tendem a possuir uma parcela significativamente maior das ações do que pequenos investidores. Portanto, embora a propriedade seja fragmentada, a concentração de riqueza ainda existe no mercado acionário.

  • Financiamento para Empresas: Ao vender ações, as empresas levantam capital que pode ser usado para financiar seu crescimento, investir em pesquisa e desenvolvimento, expandir suas operações e criar mais empregos. Esse fluxo de capital é essencial para a dinâmica da economia e para a criação de mais "riqueza" no longo prazo.

Em resumo, o mercado de ações representa um mecanismo complexo de distribuição da propriedade e da riqueza, onde a "pilha de ouro" de uma empresa é dividida em inúmeras partes e pode ser detida por uma vasta gama de investidores. Embora essa distribuição não seja perfeitamente igualitária, ela demonstra como a riqueza na economia moderna é muito mais fluida e compartilhada do que a imagem de uma única "pilha" sugere.

Um quadro com contrastes - A desigualdade

Embora tenhamos desvendado como a riqueza é gerada de forma dinâmica e como o mercado de ações fragmenta a propriedade, distribuindo-a por um número maior de participantes, é crucial pintar um quadro completo que inclua o tema da desigualdade. A existência de grandes concentrações de riqueza, mesmo em um sistema dinâmico, levanta questões importantes sobre justiça social e oportunidades equitativas.

É inegável que a distribuição da riqueza e da renda nas economias modernas é frequentemente desigual. Alguns indivíduos e grupos acumulam uma parcela significativamente maior dos recursos do que outros. Essa desigualdade pode ter múltiplas causas, incluindo diferenças em habilidades, educação, oportunidades, herança, risco assumido e até mesmo fatores de sorte.

Reconhecer a importância do debate sobre a desigualdade não significa endossar a solução simplista de uma divisão igualitária e imediata da riqueza existente. Como argumentamos, tal abordagem ignoraria a dinâmica do capital, desmantelaria os meios de produção e, em última análise, prejudicaria a capacidade de gerar riqueza futura para todos.

No entanto, a preocupação com a desigualdade é válida e merece uma análise cuidadosa. Uma disparidade excessiva pode levar a:

  • Instabilidade Social e Política: Sentimentos de injustiça e falta de oportunidades podem gerar tensões sociais, polarização política e até mesmo instabilidade.

  • Ineficiência Econômica: A desigualdade extrema pode limitar o potencial de crescimento econômico ao impedir que uma parcela significativa da população invista em capital humano (educação, saúde) ou participe plenamente da economia.

  • Redução da Mobilidade Social: Quando a riqueza e as oportunidades se concentram em um pequeno grupo, torna-se mais difícil para indivíduos de origens menos favorecidas ascenderem economicamente.

Portanto, embora a solução não resida em uma "divisão de bolo" simplista, é fundamental buscar mecanismos que abordem a desigualdade de forma econômica e sustentável. Isso pode incluir políticas que visam:

  • Promover a igualdade de oportunidades: Investimentos em educação de qualidade para todos, acesso à saúde, e a eliminação de barreiras discriminatórias podem ajudar a nivelar o campo de jogo.

  • Fortalecer os mecanismos de proteção social: Redes de segurança social, como seguro-desemprego e programas de assistência, podem mitigar os impactos da pobreza e da vulnerabilidade econômica.

  • Implementar sistemas tributários progressivos: Uma tributação mais elevada sobre rendas e riquezas mais altas pode financiar serviços públicos e programas sociais, contribuindo para uma distribuição mais equitativa dos recursos.

  • Regular os mercados para evitar a concentração excessiva de poder econômico: Políticas antitruste e a supervisão do setor financeiro podem ajudar a prevenir a formação de monopólios e oligopólios que podem exacerbar a desigualdade.

Em suma, a questão da desigualdade é um contraponto importante à nossa discussão sobre a criação dinâmica de riqueza. Embora a solução não seja uma divisão ingênua, reconhecer e abordar as causas e consequências da desigualdade é essencial para construir uma sociedade mais justa e economicamente próspera para todos.

O metal nobre que assume múltiplas formas

Assim como um metal nobre como o ouro pode ser transformado em joias, moedas, componentes eletrônicos e inúmeras outras aplicações, a riqueza em uma economia moderna se manifesta em diversas formas, cada uma com sua própria dinâmica e contribuição para o sistema:

  • Riqueza Financeira: O Ouro Líquido: Representada por dinheiro, ações, títulos e outros ativos financeiros, essa forma de riqueza é altamente líquida e serve como meio de troca, reserva de valor e unidade de conta. Sua dinâmica reside na sua capacidade de circular, ser investida e gerar mais riqueza através de juros, dividendos e valorização. Pense no ouro em barras, pronto para ser transformado em diferentes instrumentos de valor.

  • Riqueza Imobiliária: O Ouro Fundacional: Engloba terrenos, edifícios e infraestruturas. Sua dinâmica está ligada à sua durabilidade, à capacidade de gerar renda (aluguel) e à valorização a longo prazo. Assim como uma base sólida de ouro pode sustentar uma estrutura complexa, a riqueza imobiliária fornece a base física para a atividade econômica.

  • Riqueza Intelectual: O Ouro do Conhecimento: Compreende patentes, marcas, direitos autorais, know-how e capital humano (educação e habilidades). Sua dinâmica é multiplicadora, pois o conhecimento pode ser compartilhado e reutilizado infinitamente, gerando inovações e novas formas de riqueza. É como a capacidade de refinar o ouro em ligas mais valiosas e com novas propriedades.

  • Riqueza Natural: O Ouro da Terra: Inclui recursos como minerais, petróleo, água, florestas e fertilidade do solo. Sua dinâmica envolve a descoberta, extração, transformação e uso sustentável desses recursos para gerar valor. É o ouro em sua forma bruta, esperando para ser lapidado.

  • Riqueza Social e Cultural: O Ouro da Confiança: Refere-se às redes de relacionamento, confiança mútua, instituições sólidas, valores culturais e capital social de uma sociedade. Essa forma de riqueza, embora intangível, facilita a cooperação, a inovação e a eficiência econômica. É como a liga que une diferentes pedaços de ouro, criando algo mais forte e valioso.

Cada uma dessas formas de riqueza interage dinamicamente com as outras. A riqueza financeira pode ser investida em imóveis, em pesquisa para gerar riqueza intelectual ou na exploração de recursos naturais. A riqueza intelectual pode levar a novas tecnologias que aumentam a eficiência na extração de recursos naturais ou criam novos produtos financeiros. A riqueza social e cultural fortalece as instituições que sustentam todas as outras formas de riqueza.

Compreender essa multiplicidade de formas de riqueza e suas interconexões complexas nos afasta ainda mais da visão simplista de uma única "pilha de ouro" estática. A economia é um ecossistema onde diferentes tipos de valor são constantemente criados, transformados e trocados, impulsionando o crescimento e o desenvolvimento.

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