terça-feira, 27 de maio de 2025

Algumas obviedades econômicas - 5

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O Espelho da Poupança e do Crédito: Desvendando a Identidade Keynesiana


Gemini da Google e Francisco Quiumento

Em discussões econômicas, por vezes nos deparamos com simplificações ou negações de princípios fundamentais que moldam o funcionamento do sistema financeiro e a dinâmica macroeconômica. Uma dessas negações, que considero um erro conceitual significativo, reside na desconsideração da identidade proposta por John Maynard Keynes, onde a poupança agregada de uma economia é intrinsecamente ligada ao volume total de crédito ofertado.

Essa identidade não implica uma causalidade direta e imediata, mas sim uma relação de correspondência que emerge das próprias definições macroeconômicas e dos fluxos financeiros dentro de um sistema. A poupança, em sua essência, representa a parcela da renda que não é consumida, tornando-se, portanto, um potencial recurso financeiro disponível. Por outro lado, o crédito representa a mobilização desses recursos para financiar investimentos, consumo futuro ou outras atividades econômicas.

Negar essa identidade seria como ignorar a lei da conservação da energia em física. De onde viria o crédito, senão da parcela da renda que foi poupada e disponibilizada para o sistema financeiro? Mesmo as inovações financeiras e a complexidade dos mercados não alteram essa relação fundamental em nível agregado. A capacidade do sistema bancário de criar moeda através do efeito multiplicador de depósitos é, em última instância, ancorada na base de depósitos (que são, em sua origem, poupança).

A confusão muitas vezes surge ao se observar o curto prazo e as flutuações nos mercados de crédito. A política monetária, por exemplo, pode influenciar a oferta de crédito através de mecanismos como a taxa básica de juros e os requerimentos de reserva. No entanto, essas ações operam dentro da estrutura mais ampla onde a poupança nacional estabelece o limite fundamental para a expansão sustentável do crédito. Uma expansão de crédito desvinculada de uma base sólida de poupança pode levar a desequilíbrios, inflação e instabilidade financeira.

Considerar que o volume de crédito pode se expandir indefinidamente, sem uma contrapartida na poupança agregada, ignora a necessidade de recursos reais para sustentar esse crédito. Em última análise, os investimentos financiados pelo crédito precisarão ser validados por bens e serviços reais produzidos pela economia, que são, em parte, financiados pela poupança acumulada.

Portanto, a identidade keynesiana entre poupança e oferta de crédito não é uma mera curiosidade teórica, mas sim um princípio essencial para a compreensão da macroeconomia. Desconsiderá-la pode levar a análises falhas e a políticas econômicas equivocadas, com potenciais consequências negativas para a estabilidade e o crescimento de longo prazo. Reconhecer essa correspondência nos permite ter uma visão mais clara dos limites e das potencialidades do sistema financeiro e da sua relação intrínseca com a capacidade de poupança de uma nação. 

A Alavancagem pela Ação do Estado nos Períodos de Crises

A constatação de que a expansão indefinida do crédito, sem uma contrapartida na poupança agregada, é insustentável, pois os investimentos financiados precisam ser validados por bens e serviços reais, lança luz sobre o papel crucial e complexo da ação estatal em períodos de crise econômica. Quando a poupança e o investimento privados se retraem sob o peso da incerteza e do pessimismo, o Estado pode se valer de mecanismos de alavancagem para tentar reativar a economia, suprindo a lacuna na demanda e estimulando o investimento.

Em momentos de turbulência econômica, a poupança privada tende a diminuir à medida que famílias e empresas priorizam a liquidez e adiam decisões de consumo e investimento. A falta de perspectivas de demanda futura e a aversão ao risco paralisam o investimento privado, criando um ciclo vicioso de contração econômica. Nesse contexto, a intervenção estatal surge como uma potencial força motriz, utilizando o crédito público (e a expectativa de futura poupança gerada pela recuperação) para impulsionar a atividade econômica através de diversos mecanismos de alavancagem.

O Estado dispõe de várias ferramentas para exercer essa alavancagem. O aumento dos gastos públicos em infraestrutura, educação, saúde e programas sociais injeta diretamente demanda na economia, criando empregos e estimulando a produção. A oferta de crédito subsidiado e a concessão de garantias para empréstimos podem incentivar o investimento e o consumo que o setor privado, cauteloso, hesita em realizar. Adicionalmente, a implementação de uma política fiscal expansionista, seja através da redução de impostos para aumentar a renda disponível ou do aumento direto dos gastos governamentais, visa elevar a demanda agregada e romper o ciclo recessivo.

No entanto, a alavancagem estatal em períodos de crise não está isenta de riscos e limitações. O aumento do endividamento público é uma consequência inevitável da expansão do crédito e dos gastos estatais, e a sustentabilidade dessa dívida a longo prazo representa uma preocupação macroeconômica fundamental. O fenômeno do "crowding out", onde a maior demanda por crédito pelo setor público eleva as taxas de juros e dificulta o acesso ao crédito pelo setor privado, pode minar o objetivo de estimular o investimento. Além disso, a intervenção estatal, por sua natureza, pode levar a ineficiências e a uma alocação de recursos menos otimizada do que aquela realizada por agentes privados motivados pela busca de lucro. Uma dependência excessiva e prolongada da ação estatal também pode dificultar a retomada autossustentável da economia quando os estímulos forem retirados.

Retomando a premissa inicial, a eficácia da alavancagem estatal, financiada por crédito, reside em sua capacidade de catalisar um aumento na produção de bens e serviços reais. Os investimentos realizados com o crédito público precisam gerar um crescimento da capacidade produtiva e da renda futura para validar o endividamento inicial. Essa produção expandida, por sua vez, necessitará ser absorvida pela demanda, que será sustentada, em parte, pela poupança agregada que a própria recuperação econômica irá gerar. Se a alavancagem estatal falhar em impulsionar um crescimento robusto e sustentável, o peso da dívida pública se tornará um fardo cada vez mais difícil de carregar.

O debate sobre o momento ideal e a magnitude apropriada da intervenção estatal em crises é central na teoria e na política econômica. As correntes keynesianas tendem a defender uma ação estatal enérgica e imediata para superar a armadilha da liquidez e o pessimismo paralisante. Em contraste, outras perspectivas preconizam uma intervenção mais cautelosa e focada em medidas que restaurem a confiança e permitam que o setor privado retome o protagonismo na recuperação econômica.

Em conclusão, a alavancagem estatal em períodos de crise representa uma tentativa de utilizar o crédito público para reativar a economia quando a dinâmica privada falha. No entanto, o sucesso dessa estratégia depende intrinsecamente da capacidade desses investimentos de gerar um aumento sustentável na produção e na renda futuras, validando o crédito inicial com bens e serviços reais e, em última análise, com a poupança que será gerada pela própria recuperação. A prudência, o planejamento estratégico e a avaliação constante dos resultados são essenciais para que a alavancagem estatal se torne um trampolim para a recuperação e não um fardo para as gerações futuras.

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